Wednesday, September 06, 2006

A ponte


Quando estava cursando Lógica Jurídica na faculdade o professor pediu para que escrevessemos uma história falaciosa inspirado no texto "O amor é uma falácia" do M. Sulman.

"A ponte" foi o textoque escrevi e entreguei ao professor...espero que gostem (é um pouco bobinho e muuuito falacioso rsrsrs)

A Ponte

O grande mistério do mundo deve ser o mistério de que não há mistério. Não sei se é destino, mas a minha vida mudou por causa de uma ponte. Foi à ponte que me fez pensar como seria mais feliz se eu tivesse o dom de falar a verdade.
Sou moralista, adoro ver televisão, acredito em jornais, não leio muito e me limito a minha profissão que, aliás, não é a melhor, mas ganho uma boa grana nela. Como vivo sozinho acreditava que não precisava de mais nada a não ser uma boa cerveja gelada e uma televisão ligada o dia inteiro.
Ali, perto do consultório médico que vou todos os dias trabalhar, na Rua 39 foi imposto um desvio para contornar cinco quarteirões e o meu trajeto mudou todo, o motivo do desvio foi uma rachadura na Ponte Barbacena. Foi por isso que comecei a passar pela Avenida Itapuimi e, por causa do horário, ficava preso no engarrafamento uns quinze minutos.
Logo pensei, não vou fazer este retorno que as placas estão sugerindo porque todo mundo vai fazer, prefiro passar pela Avenida Itapuimi e esperar quinze minutos do que chegar atrasado meia hora no serviço, fato é que eu nunca havia passado pelo retorno que as plaquinhas sinalizadoras indicavam simplesmente havia imaginado um engarrafamento maior.
No primeiro dia na Avenida Itapuimi, veio um menino ao meu lado sussurrando alguma coisa. Achei que ia me assaltar e disse:
-Pode levar tudo, de menos o carro. – fiquei pensando o quanto eu odiava esses marginaizinhos.
- Ô doutô eu não vou te roubar não, estou te oferecendo uma balinha pro senhô comprar na minha mão, só dois reais, estou morrendo de fome, minha família está morrendo de fome, somos pobres, marginalizados, ignorante...
- Tá!!!! Já entendi. Não precisa implorar quanto é mesmo a bala?
- Só três reais.
- Você não disse que era dois?
- E senhô disse que não sabia não, viu?
Acabei levando a tal balinha por dois reais e cinqüenta centavos, o que me pareceu mais um roubo não declarado. Assunto extremamente negociado, calculado. O que me irritou foi à esperteza do rapaz, confesso. Mentira, o que fiquei mais irritado foi com aquele semi-dialeto que engolia os “erres” e sabia exatamente os cifras.
No outro dia, no mesmo engarrafamento, o diabólico menino marginalizado e negociador de balas surgiu ao meu lado, desta vez ele começou o diálogo.
- E aí doutô, vai uma balinha de caramelo aí?
- Ah, você novamente. Não obrigado, hoje eu não quero – disse decidido.
- Poxa vida cara, o senhô não vai ajudar minha família não? Olha como eu me visto e o senhô todo de ternu, gravatinha e com um carrão desses. O que o senhô faz?
- Gostou da minha roupa? Anos de estudos, universidade e tudo mais. Eu... – hesitei – eu... sou médico! Psiquiatra.
- Que bom, meus pais queriam que eu fosse médico, cirurgião. Assim eu evitava da minha família ter que pagar médico, é tudo muito caro e a gente mora no barracão.
- Nossa, na favela?
-E os caras querem me matar, porque tenho que levar dinheiro e se não levar é bum!!!!!!! – disse o garoto com uma expressão de medo.
Naquela hora meu coração parou. Fiquei frio e imaginei a situação daquele pobre infeliz, vendendo bala para não morrer. Pobre garoto.
- Qual é o seu nome?
- Doutô meu nome é Jão Marcelo. Mas pode me chamar de Marmelo. E o seu?
- Meu nome é Augusto Frosse. Mas pode me chamar de Doutor Augusto Frosse. Gosto que me chamem assim.
- Pois é doutô Augusto Frosse. Todos os meninos na favela são iguais a mim, porque não moram em lugares de luxo e ninguém tem condição de ser feliz.
- É mesmo? Que pena. Graças a Deus eu não tive esse problema. Quanto é a balinha mesmo?
- É três reais, aumentou porque eu preciso levar mais dinheiro. O senhô “intendi”, né? – o maldito garoto me olhou com uma expressão de muito sofrimento.
- Entendo sim – disse muito triste pela situação do garoto – Eu quero a caixa toda. Quanto dá tudo?
- 25 reais.
Peguei o único dinheiro que tinha na minha carteira, que anda sempre vazia porque nunca tenho dinheiro, nem para comprar minha cervejinha, ganho muito pouco. Foi incrível, durante uma semana passava todos os dias ali e o pentelho nunca deixou de me chamar de “Doutor Augusto Frosse”. Estabeleci um grande diálogo. Fiquei sabendo que ele morava somente com a mãe e sete irmãos. Não ia para escola para ter o que comer, um dos irmãos era deficiente físico e outro tinha sido contaminado por um vírus letal. Todos os dias comprava balas e mais balas para ajudar o tal garoto.
Foi quanto tudo começou a ficar claro. Tínhamos nos tornado amigos, ele me contava piadas eu contava as minhas a ele. Depois nos tornamos quase irmãos dei carona até uns quarteirões para ele e conversávamos sobre o Clube Atlético Mineiro e o Cruzeiro. Então vi que nossa relação era mais que isso eu era o pai e ele o filho. Dei um par de roupas para ele e ele me deu um cartão de dia dos pais. Era Agosto e nunca tinha recebido um cartão de dia dos pais.
Dois meses se passou e a ponte não havia sido concertada. Eu já nem torcia para ela ser concertada, já que iria me forçar a passar pela Rua 39 novamente. Depois de dois meses tudo se tornou, infelizmente, claro.
Para começar, não sou médico. Sou motorista, um bom motorista daqueles que pega o carro antes para pegar o patrão. Bem, tem um fundo de verdade nessa história: sou motorista de uma clínica médica. O carrão lindo e discreto não é meu, mas da clínica eu trabalho.
No último dia em que vi o Marmelo o Doutor Olívio Marcio Pinto, médico cardiologista e meu chefe, não fez plantão. Após buscar o Doutor em sua casa, ele me pediu para que o levasse a clínica. Nunca tinha feito isso, ido buscar o Doutor em sua casa. Achei aquilo tudo um abuso de autoridade por parte daquele médico, eu trabalho para a clínica e não para ele.
De tão acostumado não fazer o retorno, passar pela Avenida e em seguida conversar um pouco com Marmelo nem pensei na hipótese de que o garoto poderia descobrir que eu era motorista, mesmo com o Doutor no carro. Dito e feito:
- E aí Marmelo, como você tá filho? – Falava com um carinho e respeito pelo garoto.
- Vou bem Doutor – Depois de um tempo Jão começou a parar de engolir os “erres” de Doutor e senhor.
- Tem almoço para hoje?
- Tenho sim senhor. Vou ter que vender umas balinhas.
Foi quando ouvi um grito, dentro do carro, que ecoou em minha cabeça, deu volta no quarteirão todo e quase me deixou surdo.
- ROBERTO MARCIO o que o senhor faz aqui, vestido deste jeito. Motorista, abra essa porta imediatamente.
- Roberto Márcio? – Perguntei para o Doutor
- Esse menino é meu filho! – Disse o médico saindo do carro.
- Não senhor esse menino é um pobre mendigo que não tem o que comer!
- Você é motorista? Um simples motorista? – perguntou Marmelo ou Roberto, essas horas eu nem sabia mais quem ele.
Meu dia parou. Depois disso o Dr. Olívio correu até Marmelo que também corria. O Pegou pelos cabelos sujos e o empurrou até o carro. Eu morrendo de ódio me senti enganado por um moleque problemático, filhinho de papai e rico. Ele não ia à escola, fugia para vender balas e enganar as pessoas. Algum problema desses de cabeça.
Aquele menino que trouxe alegria para minha vida era um farsante mirim. Um medíocre farsante mirim. E eu um medíocre farsante adulto. Não sei o problema que Marmelo tinha ou tem. Só sei que sinto falta de conversar com ele no engarrafamento matutino e com cheiro das fumaças de carro.
Sou um idiota, passado para trás. Me sinto idiota por tê-lo passado para trás. Hoje a Ponte Barbacena já foi concertada. Roberto Márcio, ou Marmelo para os íntimos, está internado em uma clínica psiquiatra. Eu estou sozinho com uma latinha de cerveja na mão e contando a minha história para vocês.