Wednesday, July 19, 2006

Fernando Pessoa


XXXII
Ficções do interlúdio/1 - Poemas Completos


"Ontem à tarde um homem das cidades
Falava à porta da estalagem.
Falava comigo também.

Falava da justiça e da luta para haver justiça,
E dos operários que sofrem,
E do trabalho constante, e dos que têm fome,
E dos ricas, que só têm costas para isso.

E, olhando para mim, viu-me lágrimas nos olhos
E sorriu com agrado, julgando que eu sentia
O ódio que ele sentia, e a compaixão
Que ele dizia que sentia.

(Mas eu mal o estava ouvindo.
Que me importam a mim os homens
E o que sofrem ou supõem que sofrem?
Sejam como eu - não sofrerão.
TODO O MAL DO MUNDO VEM DE NOS IMPORTARMOS UNS COM OS OUTROS, QUER PARA FAZER BEM, QUER PARA FAZER MAL.
A nossa alma e o céu e a terra bastam-nos.
Querer mais é perder isto, e ser infeliz.)

Eu no que estava pensando
Quando o amigo de gente falava
(E isso me comoveu até as lágrimas),
Era em como o murmúrio longínquo dos chocalhos
A esse entardecer
Não parecia os sinos duma capela pequenina
A que fosse à missa as flores e os regatos
E as almas simples como a minha.

Louvado seja Deus que não sou bom,
E tenho o egoísmo natural das flores
E dos rios que seguem o seu caminho
Preocupados sem o saber
Só com florir e ir correndo.
É essa a única missão no Mundo,
Essa - existir claramente,
E saber fazê-lo sem pensar nisso.

E o homem calara-se, olhando o poente.
Mas que tem com o poentequem odeia e ama?"

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